domingo, 20 de julho de 2014

Quando a régua e o chicote se tornam pílulas: uma reflexão sobre o uso de nootrópicos no trabalho e ambiente escolar

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O consumo de nootrópiocos, as chamadas "smart drugs" ou ainda, cognitive enhancers ("melhoradores cognitivos") tem crescido exponencialmente no mundo, especialmente em ambientes escolares e no trabalho. Esses fármacos, cujos mais conhecidos e vendidos são o modafinil e metilfenidato (a "famosa" ritalina) possuem indicação clínica para doenças como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e narcolepsia.

Nesse artigo não entrarei no mérito de questionar o uso desses fármacos para esses fins nem para questionar a já questionada hisperdiagnose dessas doenças, em especial do TDAH em crianças. O objetivo aqui não é também questionar os possíveis malefícios ou até benefícios que essas drogas podem trazer, e sim apresentar questionamentos sobre o porquê esse uso sem indicação clínica tem crescido no mundo especialmente entre os mais jovens.

Nos espaços escolares mais tradicionais (a maioria) busca-se de maneira incessante alunos-modelo, os quais apresentar-se-iam como sujeitos calados, "bem comportados"  e que aprendem tudo o que o professor ensina. Aliado a isso, o crescimento da cultura universitária no Brasil gera novas demandas como o famigerado vestibular e, mais recentemente, o ENEM. Em ambos os concursos almeja-se notas maiores para buscar os cursos superiores tão desejados.

O fato é que o volume de conhecimento exigido por essas provas não são condizentes com o volume do conhecimento aprendido nas escolas brasileiras (e isso não se resume às públicas, mas também às privadas). A falta de tempo e a sensação de inabilidade dos estudantes em absorver todo o conhecimento necessário para ser aprovado na prova, geram altos níveis de estresse e ansiedade nesses jovens de ensino médio. Passado esse período turbulento e atingida a universidade, novas pressões (e até maiores) surgem. Esses estudantes hora aterrorizados por uma única prova anual são aterrorizados por dezenas de provas, monografias, apresentações, estágio (às vezes trabalho) em um único semestre. Aos que optam pela pós-graduação a realidade não é muito diferente. Além das disciplinas, leituras, experimentos, coleta de dados, congressos, etcs, a pressão por resultados e volume de publicações fazem com que os pós-graduandos temam também a sobrecarga e a falta de tempo para executar todas as tarefas (necessárias?).

No mercado de trabalho a cobrança por alta produtividade, números, vendas, produtos, cálculos, etc assombram os jovens adultos recém chegados no mercado de trabalho e aos mais experientes que se vêm ameaçados pela energia dos mais jovens em fazer mais em menos tempo.

Em cenários mais específicos, a escola é marcada por uma tentativa diária de formatação de mentes disfarçada de educação onde há bons e maus alunos, sendo esses os que não concordam com as regras impostas por um único indivíduo chamado de professor. Esses rebeldes, em geral possuem, as notas mais baixas e constituem o grupo rotulado como os "hiperativos". Seria esse aluno de fato hiperativo e com baixo rendimento por reais dificuldades de aprendizado ou o ambiente escolar que é desinteressante para pessoas desse perfil?
O uso de nootrópicos nesses estudantes provoca "bons resultados" no "aprendizado" desses estudantes, suas notas crescem e seu comportamento se adéqua a realidade imposta agradando aos pais, professores e àqueles senhores da indústria farmacêutica (que não para de crescer).

No mercado de trabalho, cada vez mais competitivo, os que atingem os maiores números em menor tempo são os laureados dessa vez. Ou seja, fazer muito é fazer melhor, não importando muito se o funcionário está satisfeito, se ele tem qualidade de vida e prazer em executar seu trabalho.
Em um passado, não muito distante, os professores formatavam seus alunos "à reguada", com duras punições físicas aos que não se portassem do jeito desejado.  Já no âmbito da produtividade, uma parcela dos trabalhadores forçados, os escravos, era dominada à chicotada com punições de tortura extrema aos rebeldes. Mais recentemente, corte de salários e demissões por justa causa assombram os que gostariam de se rebelar contra o âmbito repressor de algumas empresas.

O uso de fármacos para aumento da produtividade e sua boa receptividade por parte dos professores e empregadores se dá na mesma lógica de formatação de cérebros numa perspectiva menos (aparentemente) amedrontadora do que as duras punições físicas corriqueiras nos séculos passados, pois ela é, teoricamente, voluntária, afinal "só toma o remédio quem quer, não é mesmo?"
Quando então que tivemos a brilhante idéia de trocar os reforçadores negativos pelos positivos criando a falsa ilusão de que agora que temos a pílula da genialidade?  Daria um dedo para saber o que Skinner pensaria nesse momento.

As justificativas para o uso são diversas, mas todas baseadas no ter mais com menos. Será mesmo que nossa espécie é tão imperfeita a ponto de termos que esperar "as maravilhas da farmacologia" para consertar nosso erro biológico e que só agora, após 100 mil anos de existência, conseguimos ser mais adequados ao nosso espaço temporal?

Precisar de remédios para aumentar nossa produtividade, pois ela, teoricamente, está inadequada ao sistema, não deveria ser um sinal de alerta para refletirmos que sistema é esse ao invés de rendermo-nos a essa lógica produtivista?

Seríamos nós lentos demais ou sim o sistema que está muito acelerado? Seríamos nós que incapazes de aprender ou a escola que é muito desinteressante? Seríamos nós não aptos a memorizar todas as informações necessárias ou essas informações não são tão necessárias assim? Seríamos nós frágeis e incapazes de dar conta das jornadas de trabalho ou as jornadas de trabalho que estão inadequadas?
Viver em nosso tempo fisiológico natural por alguns anos e deixar de lado essa "corrida armamentista" e competitiva seria uma boa idéia para fazer um estudo observacional na tentativa de responder as perguntas acima e verificar se essas necessidades são tão necessárias assim.

Após isso quem sabe percebemos que de fato eu estava errado e a indústria farmacêutica estava certa e, de fato, salvou a humanidade  consertando-nos com suas réguas e chicotes moleculares.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Carta aberta ao Excelentíssimo presidente da FAPESP Celso Lafer



Caro Professor Celso Laffer,


Escrevo para contar minha história e manifestar profunda indignação com tamanho descaso ao pós-graduando Brasileiro.


É com muita tristeza que hoje, dia 5 de junho, vejo que a FAPESP não depositou, como de habitual, minha bolsa de doutorado. Motivo?

“2.4.3 Todo comprovante em tamanho A4 ou maior (ex.: DANFE, cotação de preço, consulta aos cadastros fiscais públicos), deverá ser apresentado na posição “retrato” (vertical), ordenado sequencialmente, de forma individual sem ser colado em outra folha de papel. Os comprovantes nesta situação não deverão ser colados ou grampeados em outra folha nem entre si.”

A interminável maratona da prestação de cotas é um desrespeito com os pesquisadores em especial com os pós-graduandos. Temos que perder dias de trabalho para anexar notas uma a uma colando-as em folhas numeradas A4. No entanto, não são todas as folhas que podem ser coladas na tal folha A4, algumas podem outras não. As notas maiores devem ser dobradas, mas não coladas; as páginas devem ser numeradas, e ninguém sabe informar como se numera as notas que não podem ser coladas. Enfim, uma verdadeira gincana do grampeia e cola.

Será que de fato mereço essa punição, por não cumprir essa norma? Seria ela de extrema importância na minha formação como doutor em ciências?

Obrigar uma mão de obra, teoricamente qualificada, desperdiçar seu tempo de trabalho realizando malabarismos burocráticos, não seria um surreal desperdício de dinheiro?

O pior, senhor Presidente, é saber que outros colegas, que mandaram a prestação igual à minha ou sequer identificaram as notas, tiveram suas prestações aprovadas. Ou seja, o processo além de patético é totalmente arbitrário.

Esse sistema parece partir do pressuposto que somos desonestos. Precisamos provar que não usamos o dinheiro indevidamente, quando, na prática, o senhor deve muito bem saber, os pesquisadores brasileiros comumente pagam de seu bolso para trabalhar.

Não é de hoje que conheço as famosas suspensões de pagamento por travamento de conta da FAPESP. Destaco que em nenhum emprego do mundo, no qual pessoas trabalham em condições mínimas de regulamentação, há a suspensão do pagamento aos trabalhadores. Sabe por que senhor presidente? Porque existem vidas por trás do trabalho.

É fato que existe a grande discussão sobre a pós-graduação não ser um emprego, mas sim um período de formação; concordo em partes com essa visão. No entanto, para obter uma bolsa de estudos na pós-graduação você deve ter dedicação exclusiva, ou seja, não pode buscar outras fontes de renda. Isso, automaticamente, não implicaria em compromisso, e de ambas as partes?

Em algum momento a FAPESP cogita a possibilidade de que um pós-graduando, que tem sua bolsa suspensa por tamanha e miserável burocracia, possa ter uma família? Filhos? Pais ou pessoas que dependem dessa fonte de renda?

É natural, e esperado, que com o acesso de pessoas de mais baixa renda às universidades públicas, surja o interesse delas pela pós-graduação e isso é excelente. Entretanto, parece-me, que ainda estamos num sistema de bolsas que privilegia os filhos da aristocracia burguesa, os quais podem dar-se o luxo de fazer pesquisa somente por prazer e não também como fonte de seu sustento.

Grande maioria dos diretores das agências de fomento acaba por se afastar realidade de seus alunos, isso é normal, pois são outras prioridades. Muitos, já são pesquisadores sênior, isto é, realizaram suas pós-graduações em outro tempo o qual não representa a atual realidade. Era um tempo em que fazer ciência no Brasil era muito difícil e muitos erros foram cometidos na gestão politico-científica do país. No entanto, citando genial frase do filósofo Vladimir Safatle “As gerações presentes não devem ser reféns das incapacidades das gerações passadas”. Portanto ouvir os jovens que fazem ciência no dia-a-dia “pondo mão na massa” é essencial para o desenvolvimento da mesma.

É um banho de água fria em um doutorando ficar sem sua bolsa faltando três meses para sua defesa, e que, para pagar seu aluguel suas contas, ects, precisará pedir empréstimo ao banco e criar dívida para superar as mazelas da burocracia.

Sinto-me hoje, dia 5 de junho de 2014, extremamente desrespeitado pela FAPESP, que jamais considerou que sempre me esforcei ao máximo para ser um aluno exemplar ao longo de toda minha pós-graduação. Os que me conhecem sabem que sempre fui um cientista apaixonado pelo que faço. Defensor ferrenho da ciência pública e de qualidade. Sou produtivo, faço colaborações – realizei 4 colaborações internacionais e 2 nacionais em nosso grupo, me envolvo em política científica e estou produzindo um trabalho sólido de 4 anos de pesquisa em meu doutorado.

Chegando ao fim doutorado, é comum estarmos cansados. No entanto, eu, curiosamente, estava até agora renovado. Voltei de um congresso dos EUA (financiado pela FAPESP e isso é louvável) com muitas idéias, novos contatos e logo qualifiquei. Estava animado de novo, escrevendo meus artigos analisando os dados e muito entusiasmado com o desfecho de minha pesquisa.

Tamanha é minha desmotivação, minha tristeza com esse sistema hoje, que escrevo não com intenção de implorar que me paguem, pois isso já foi, passou. Mas sim, para chamar a atenção para esse problema de tamanha gravidade. A suspensão de pagamento a um pós-graduando entristece, desmotiva e castra o desejo de seguir fazendo ciência em nosso país. Quantos pesquisadores brilhantes, amigos meus, tenho visto abandonar a ciência por conta das maratonas burocráticas e da desvalorização do pós-graduando.

E eu, que ânimo tenho agora em escrever minha tese sabendo que tenho uma dívida de 3 mil reais com o banco para pagar? Que vontade tenho de seguir em frente com cientista no Brasil tendo sido tão desrespeitado?

Mas eu resistirei. Hoje, mais do que nunca, tenho certeza que quero me tornar um cientista. Um cientista Brasileiro e que se orgulha de seu país. Eu resistirei ao sistema, senhor presidente, mas não me adequarei. Entrarei nele com mais vontade e sede de mudança.

Por hora, me cabe escrever ao senhor essa carta aberta, para que haja uma profunda reflexão sobre o que significa, humanisticamente falando, a suspensão de verbas por critérios absolutamente ilegítimos. Em especial as bolsas “salário” dos pós-graduandos, pois elas mantêm vidas, as quais não podem ser interrompidas por míseras folhas de papel.

Espero que essa história reverbere outras tantas, que sei que existem, e que a FAPESP, a qual sempre foi vanguarda na política de fomento a ciência acabe com esse retrocesso burocrata e desumano da suspensão de pagamento sem aviso e por questões dessa irrelevância.

Tudo isso, senhor presidente, é para criticar e lembrar que a burocracia é uma invenção, a vida das pessoas é a realidade.

Atenciosamente,


Douglas Engelke
Doutorando do programa de Pós-Graduação em Neurologia/Neurociências UNIFESP e bolsista FAPESP.